VIAGENS NA MINHA TERRA


"Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo - entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, donde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal." in
Garrett, Almeida - Viagens na minha terra. Porto: Figueirinhas, 1973

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

A invenção do amor

 
 
Em todas as esquinas da cidade

nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos
 
nas janelas dos autocarros

mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
 
de aparelhos de rádio e detergentes

na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém

no átrio da estação de caminhos de ferro
 
que foi o lar da nossa esperança de fuga

um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho do medo
 
da solidão da angústia

um cartaz denuncia que um homem e uma mulher

se encontraram num bar de hotel

numa tarde de chuva
 
entre zunidos de conversa

e inventaram o amor com carácter de urgência

deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e

fome de ternura

e souberam entender-se sem palavras inúteis

Apenas o silêncio
 
A descoberta
 
A estranheza de um sorriso natural e inesperado
 
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna

Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente

embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta

de um amor subitamente imperativo

 
 
Um homem uma mulher

um cartaz de denúncia
 
colado em todas as esquinas da cidade

A rádio já falou
 
A TV anuncia iminente a captura
 
A polícia de costumes avisada

procura os dois amantes nos becos e avenidas

Onde houver uma flor rubra e essencial

é possível que se escondam
 
tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde

Antes que o exemplo frutifique
 
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
 
 

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
(...)


Daniel Filipe
A Invenção do Amor e Outros Poemas
Lisboa, Presença, 1972




A Invenção do Amor e Outros Poemas





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