Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'
Poema das Folhas secas de Plátano
As folhas dos plátanos desprendem-se e lançam-se na aventura
do espaço,
e os olhos de uma
pobre criatura
comovidos as seguem.
São belas as folhas
dos plátanos
quando caem, nas
tardes de Novembro
contra o fundo de um
céu desgrenhado e sangrento.
Ondulam como os
braços da preguiça
no indolente bocejo.
Sobem e descem,
baloiçam-se e repousam,
traçam erres e
esses, cicloides e volutas,
no espaço escrevem
com o pecíolo breve,
numa caligrafia
requintada,
o nome que se pensa,
e seguem e
regressam,
dedilhando em
compassos sonolentos
a música outonal do
entardecer.
São belas as folhas
dos plátanos espalhadas no chão.
Eram lisas e verdes
no apogeu
da sua juventude em
clorofila,
mas agora, no outono
de si mesmas,
o velho citoplasma,
queimado e exausto pela luz do Sol,
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada
Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della
Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo
da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os
lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das
estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a
vê-las –,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era
tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento,
livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste
pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens
ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.
António Gedeão, in 'Linhas de Força'
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